quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Senhora das Tempestades

Senhora das tempestades e dos mistérios originais
quando tu chegas a terra treme do lado esquerdo
trazes o terremoto a assombração as conjunções fatais
e as vozes negras da noite Senhora do meu espanto e do meu medo.

Senhora das marés vivas e das praias batidas pelo vento
há uma lua do avesso quando chegas
crepúsculos carregados de presságios e o lamento
dos que morrem nos naufrágios Senhora das vozes negras.

Senhora do vento norte com teu manto de sal e espuma
nasce uma estrela cadente de chegares
e há um poema escrito em páginas nenhuma
quando caminhas sobre as águas Senhora dos sete mares.

Conjugação de fogo e luz e no entanto eclipse
trazes a linha magnética da minha vida Senhora da minha morte
teu nome escreve-se na areia e é uma palavra que só Deus disse
quando tu chegas começa a música Senhora do vento norte.

Escreverei para ti o poema mais triste
Senhora dos cabelos de alga onde se escondem as divindades
quando me tocas há um país que não existe
e um anjo poisa-me nos ombros Senhora das Tempestades.

Senhora do sol do sul com que me cegas
a terra toda treme nos meus músculos
consonância dissonância Senhora das vozes negras
coroada de todos os crepúsculos.

Senhora da vida que passa e do sentido trágico
do rio das vogais Senhora da litúrgica
sibilação das consoantes com seu absurdo mágico
de que não fica senão a breve música.

Senhora do poema e da oculta fórmula da escrita
alquimia de sons Senhora do vento norte
que trazes a palavra nunca dita
Senhora da minha vida Senhora da minha morte.

Senhora dos pés de cabra e dos parágrafos proibidos
que te disfarças de metáfora e de soprar marítimo
Senhora que me dóis em todos os sentidos
como um ritmo só ritmo como um ritmo.

Batem as sílabas da noite na oclusão das coronárias
Senhora da circulação que mata e ressuscita
trazes o mar a chuva as procelárias
batem as sílabas da noite e és tu a voz que dita.

Batem os sons os signos os sinais
trazes a festa e a despedida Senhora dos instantes
fica o sentido trágico do rio das vogais
o mágico passar das consoantes.

Senhora nua deitada sobre o branco
com tua rosa dos ventos e teu cruzeiro do sul
nascem faunos com tridentes no teu flanco
Senhora de branco deitada no azul.

Senhora das águas transbordantes no cais de súbito vazio
Senhora dos navegantes com teu astrolábio e tua errância
teu rosto de sereia à proa de um navio
tudo em ti é partida tudo em ti é distância.

Senhora da hora solitária do entardecer
ninguém sabe se chegas como graça ou como estigma
onde tu moras começa o acontecer
tudo em ti é surpresa Senhora do grande enigma.

Tudo em ti é perder Senhora quantas vezes
Setembro te levou para as metrópoles excessivas
batem as sílabas do tempo no rolar dos meses
tudo em ti é retorno Senhora das marés vivas.

Senhora do vento com teu cavalo cor de acaso
tua ternura e teu chicote sobre a tristeza e a agonia
galopas no meu sangue com teu catéter chamado Pégaso
e vais de vaso em vaso Senhora da arritmia.

Tudo em ti é magia e tensão extrema
Senhora dos teoremas e dos relâmpagos marinhos
batem as sílabas da noite no coração do poema
Senhora das tempestades e dos líquidos caminhos.

Tudo em ti é milagre Senhora da energia
quando tu chegas a terra treme e dançam as divindades
batem as sílabas da noite e tudo é uma alquimia
ao som do nome que só Deus sabe Senhora das tempestades.

Manuel Alegre

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A palhaça e o palhaço*


Pepe Viyuela

O palhaço e a palhaça são embaixadores da esperança em um mundo que perde a alegria pelas feridas abertas pela fome, violência, guerra, globalização econômica. Essa globalização que inverte valores e obstrui os direitos e a liberdade dos seres humanos.

A palhaça e o palhaço viajam do país remoto da infância e se mostram a nós com seu nariz vermelho e uma maleta velha em que tudo cabe, da qual tudo pode surgir, graças à qual tudo é possível.

O palhaço e a palhaça recuperam os velhos aromas da infância perdida à qual eles podem retornar. Representam o último intento em defender-nos da lógica dos adultos, essa lógica que declara guerras, comercializa armas, inventa a dívida externa, provoca a pobreza, propicia a exploração infantil, consente em mortes por AIDS, arruína os recursos do planeta...

A palhaça e o palhaço se afastam daquela lógica adulta e se refugiam na ingenuidade infantil que não compreende aqueles discursos. Inventam uma nova linguagem e onde existe guerra, eles falam de diálogo; onde há armas, semeiam flores; onde se fala em dinheiro, antepõem seus valores; o terceiro mundo, chamam de primeiro porque ele o é em necessidades; e do primeiro dizem, sensivelmente, pouca vergonha.


É engraçado quando acusam a palhaça e o palhaço de ver o mundo ao revés, e eles respondem que a vista da direita não funciona muito bem. A palhaça e o palhaço colocam diante do rosto daqueles que crêem que são poderosos demais para esboçar um sorriso, um espelho que os mostra tal como são: ridículos.

O palhaço e a palhaça são um reduto de liberdade para os seres humanos robotizados pela tecnologia, idiotizados pela “cultura” de massa, agoniados pelo mundo maltratado.

A palhaça e o palhaço seguem o caminho traçado pela imaginação e pela poesia e se pintam ingênuos, amáveis, tolerantes, coloridos, em frente aos homens e mulheres tristes em que ameaçamos nos converter.

O palhaço e a palhaça propõem sorrisos onde outros impõem a linguagem das armas; invocam a tolerância através de seu ser diferente, excluído; representam os marginais e os marginalizados em uma sociedade que repugna o estranho, o de fora.

A palhaça e o palhaço batem à porta de todos e aí procuram a festa que falta.

O palhaço e a palhaça nos recordam que atrás dos rostos de pedra dos caminhos, sempre habita um sorriso que pode fazer-nos felizes.

A palhaça e o palhaço não são nada sem o outro.

*livre tradução de: La payasa y el payaso. in Pallasos: una mirada humana del món – Recopilació de Textos al voltant de la Mostra Internacional de Pallas@s de Xirivella.